Malas, bares, novos ares... entre tantos batentes, experiências e aprendizados, surgiram os malabares. Ainda me lembro (como se houvesse sido há tanto tempo atrás... aliás, talvez tenha sido...), na Bolívia, quando, na altitude, sentimos de forma mais intensa o mal dos ares e, com ele, a chegada dos malabares. O advento dos malabares. Surgiu não de mim, que nunca fui muito fã de circo e tinha, quando criança, uma certa desconfiança de palhaços. Surgiu de alguns caravaneiros que já tinham alguma experiência na área, por assim dizer. O que fazer no “autobus” quando já se leu trocentas páginas de algum livro, quando já se cansou do nosso documentário ao vivo nas janelas, quando se quer descansar dos inacabáveis debates sobre a origem do céu e da terra?
Malabares.
Só nos daremos conta de muitos dos aprendizados da viagem quando voltarmos para nosso cotidiano soteropolitano. Mas uma das coisas que já posso dizer que aprendi é a fazer malabares. Literalmente mesmo. Momento de gaiatice e desprendimento do “alrededor”. E de tanto se jogar nos malabares, foi inevitável a comparação com a viagem que fazemos. Uma viagem viajada, diria outro caravaneiro.
Bem, vamos lá!
Com as clássicas três bolinhas dos malabares, podemos traçar um paralelo com três esferas da jornada: o acadêmico institucional; o turístico; e o estágio em relações humanas.
O acadêmico institucional como objetivo coletivo norteador das nossas escolhas e destinos. Momentos oficiais de riqueza intelectual incrível e abertura para outros mundos. Nossa face ajuizada. Essa seria a primeira bolinha.
Se a primeira bolinha jogada inicia a arte do malabarismo, abrindo as portas para outros mundos, o êxito do lançamento e apreensão da segunda é que define a continuidade do movimento, que nos permite a entrada em outros mundos. Nossa aresta turística seria a segunda. Oficiosa. Não “turística” no sentido esvaziado da palavra. Turística naquela sensação de inquietude, de curiosidade, de indiscrição, de vontade, de sede, de fome. E, falando de fome, aproveito para parafrasear uma prima minha, fazendo uma analogia a uma de suas ótimas percepções: e a merda, é que a América Latina não cabe numa colher. É realmente difícil compreender toda a realidade de uma cidade em 2 dias, de um país em 2 cidades visitadas, de um continente em 2 meses e de uma caravana em 2 bolinhas. Vamos para a terceira.
A terceira bolinha, e não menos importante, estágio (ou curso de imersão?) em relações humanas. A quase 3 anos estudando medicina na Universidade Federal da Bahia – UFBA - e há muito não me sentia, de fato, numa universidade, justamente quando estou cada dia mais longe dela enquanto instituição física. Talvez o problema fosse, e seja, justamente esse. Estudar medicina. Pode parecer fatalista, darwinista, maquiavélico, o que for, mas hoje eu visualizo com mais nitidez como este curso tem o potencial quase assustador de vilipendiar uma pessoa, um baiano. Prognóstico sombrio. Há quanto tempo eu não lia um livro não-médico, sem aquela pressão de absorver para toda a eternidade o conteúdo de um parágrafo? Pode-se imaginar o crescimento pessoal que é conviver 24 horas do meu dia (ou 50 horas, para aqueles que dizem que meu dia é maior que o dos demais) lado a lado com estudantes de direito, ciências sociais, sociologia, história, arquitetura, artes, cinema, engenharia sanitária e ambiental, administração, relações e negócios internacionais e jornalismo, e, entre estes, anarquista, feminista, vegetarianos, entre outros. Afirmo que são outros instigantes mundos, fora daquele que eu conhecia. Ou seriam partes desse mundo que eu achava que conhecia? Vixe... se fosse redação de vestibular era zero, por fuga ao tema. Deixa eu voltar pros malabares...
Deve ser notado que cada bolinha tem sua cor, sua singularidade. Entretanto, ao mesmo tempo, devem ter o mesmo tamanho, o mesmo peso, de forma que o malabarismo fique harmônico, não-capenga. Cada esfera dessa jornada deve receber a mesma atenção, prioridade e dedicação. A falta de uma delas inviabiliza a integralidade desta arte. Se alguma das bolinhas cai no chão, será em vão tentar evitar a queda das outras duas. Se uma cai, todas caem. Por terra. Cada bolinha é essencial para a magia e beleza do malabarismo. E, mesmo essencial, a bolinha não cabe inteira na mão, como não cabem inteiras em nossa limitada percepção do concebível todas as faces de cada esfera da jornada.
Dizer que devem ter o mesmo peso não significa que devem receber a mesma atenção no mesmo momento. No malabarismo, a todo instante, você possui 1 bolinha em cada mão, e a outra no ar. Trocando em miúdos, a cada instante a mão apropria-se de uma esfera, já que as bolinhas rapidamente alternam de mãos, mas a esfera que estaria mais distante, bolinha no ar, é exatamente aquela na qual nossos olhos estão focados. Mesmo que esteja apropriando-se desta esfera, na mão, nunca se pode perder de vista aquela, no ar.
E o aprendizado? Que coisa bela é o processo de aprendizagem. Qualquer que seja. Mas vamos tratar deste em específico, aprender a lidar com os malabares. No processo de aprender a fazer malabarismo, é preciso paulatinamente calibrar a força que se aplica a cada lançamento, a direção e destino de cada bolinha e ainda conseguir cambiar as mãos. A caravana da integração é assim. É preciso ajustar a intensidade com que nos lançamos em cada oportunidade, em cada momento, definir bem o destino que será dado às abstrações oriundas das experiências e ainda ter a flexibilidade para cambiar atitudes e conceitos, adequando-se às realidades encontradas, intra e extra-caravana. Até a posição do seu corpo, não só das mãos, é fundamental para o malabarismo e deve ser aprendida. É preciso estar preparado, se plantar e compreender sua posição e condição enquanto entidade subjetiva, que não pode objetivar tudo o que vivencia, apesar de às vezes ser este o meu desejo.
Fazer malabarismo com 3 bolinhas é o que consigo hoje. E já não é tão fácil. Só o treino e o tempo, num quase adestramento, podem permitir que mais bolinhas, mais esferas, entrem no malabarismo. Assim como captar outras esferas da jornada que nos envolvem, de forma implícita, nos exige adestrar-se. Nos exige ter o olhar armado. Nos exige tempo e, por quê não, treino.
Que graça teria fazer malabarismo sozinho? Sem que houvesse alguém que, de uma posição externa privilegiada, pudesse visualizar a beleza do malabarismo em toda sua completude, com a dança hipnótica das bolinhas aos seus olhos. Que graça teria fazer uma aventura como esta, por todo um continente, por toda uma história, por toda uma simbologia, sem ter com quem dividir as descobertas, as ilusões, as desilusões, as indignações, as risadas e as saudades? É aquela terceira bolinha. É ver-se plasmado no outro. A relação com o outro. É exercitar o outramento, complexo conceito cunhado por minha mãe.
Depois de tantas semelhanças, analogias, paralelos e meridianos, só consigo enxergar uma diferença entre o malabarismo e a caravana. Se no decorrer dos dias as bolinhas vão se desgastando (e foi preciso comprar outras), com cada esfera da jornada acontece o contrário. Tornam-se mais resistentes. Mais fortes. Intensificam-se. Aprofundam-se. O passar dos dias e o viver os cotidianos engrandece nossas percepções e a nós mesmo.
Que sigam as malas, os bares, os novos ares. Que sigam os malabares.
é mesmo uma grande arte esta que nos propomos... movimentar! dos pequenos aos grandes detalhes descobrimos tantas possibilidades.. adelante saltimbancos, malabaristas e palhaços!
ResponderExcluirDavi, meu velho... Que texto excelente é esse...
ResponderExcluirEstava aqui empolgado lendo e me identificando com cada parágrafo, rapaz..
Também estou aprendendo malabares... Quem está me ensinando é Andre... Estou evoluindo, só preciso treinar
Essa metáfora das bolinhas de malabares com a caravana ficou sensacional!
Um abraço, brother!
Filho,
ResponderExcluirObrigado por existir, por me fazer rir e chorar de alegria, por me deixar orgulhosa de vc... lindo, lindo o que vc escreveu, demosntra sensibilidade, atençao pra coisas que podem passar como dessimportantes, mas que sao essenciais pra vida, para o crescimento humano... vc agora compreende o OUTRAMENTO! que bom que o mundo dos outros tb esta se tornando seu... Que relaçao bonita o malabares com as dimensoes da viagem...e a percepçao do quanto o curso que faz pode absorver e vilipendiar... agora mais critico vc ficara mais atento... vc cresceu mesmo, esta mais sabido, com maior percepçao e mais gente hà filho, PARABENS! que Deus te abençoe e te proteja meu "pequeno" grande homem... Que abençoe tb essa viagem e as pessoas que estao te fazendo muito bem... e que venhas os outros mundos e o mundo dos outros! e que Viva o outramento... Adorei! te amo muito filhao...
anologia maravilhosa! adorei, davi! Você conseguiu passar direitinho a complexidade da viagem. Adorei! um beijo!
ResponderExcluirmuiiiitoooo legal, Davi! Me orgulho de estudantes de Medicina como você, que apesar dos jalecos, livros, laboratórios e lavagens cerebrais... vc não perdeu a sensibilidade de perceber como a Vida é emocionante! Seu blog tá muito 10! Sucesso na viagem (por Lilian Sobrinho)
ResponderExcluirDavi querido,
ResponderExcluirQue delícia de texto! Gostei muito. Maravilhoso ver sua abertura para os mundos, ver seu peito querendo encher-se para além do ar das salas de aula e hospitais. Viajei na ideia do outramento que sua mãe criou. Sim, sim, e como caravaneira, posso dizer que suas metáforas são sensacionais. Desejo que continue acessando o desconhecido e avançando na descoberta de quem você é.
Um grande beijo,
Sarah